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COBERTURA ESPECIAL - Ecos - Guerras, Conflitos, Ações - Geopolítica
02 de Maio, 2012 - 12:27 ( Brasília )
Campo de batalha de Stalingrado
Tornou-se já tradição, por altura dos aniversários da Vitória sobre o Nazismo, destruir-se monumentos de homenagem aos soldados soviéticos mortos durante a guerra contra o regime de Hitler.
Vassili Amirdjanov
Sintomaticamente, esta tradição nasceu nas ex-repúblicas soviéticas, atualmente Estados independentes cujos habitantes resistiram ao invasor sendo cidadãos da URSS.
Em 19 de abril de 2012 a assembleia
municipal de Turka (Ucrânia Ocidental) decretou a demolição do memorial
aos soldados soviéticos. Em fevereiro de 2012, apesar de um forte
movimento de protesto da população local, em Batumi (Geórgia) foi
derrubado o monumento aos soldados soviéticos. Em 19 de dezembro de
2009, as autoridades de Kutaissi (Geórgia) fizeram explodir o Memorial
de Glória Militar erigido em homenagem aos georgianos que deram suas
vidas pela vitória sobre o nazismo.
Tudo isto não pode deixar de evocar a
maneira como os rebeldes líbios destruíram monumentos em túmulos de
soldados britânicos mortos na África do Norte durante a Segunda Guerra
Mundial.
Idêntico tratamento sem-cerimônia é
reservado aos monumentos aos soldados soviéticos e a seus túmulos na
Letônia e Estônia. Nestes países atualmente integrantes da União
Europeia se tornaram rotineiros desfiles de ex-homens das Waffen-SS de
que participam deputados parlamentares. Sobre a quantidade de tinta
derramada sobre os monumentos aos soldados soviéticos e o número de
pedras funerárias profanadas nas repúblicas do Báltico não existem
sequer dados estatísticos exatos.
Neste sentido, importa referir um
pormenor importante que muitos políticos nas ex-repúblicas soviéticas
fingem ignorar: para lutarem, contra os comunistas, pela independência
do país, os ex-defensores da liberdade podiam ter escolhido outra forma
de luta que não fosse aliarem-se aos nazis, a não ser que partilhassem
as ideias e os métodos de Adolf Hitler.
Durante a ocupação nazista da França
onde vivia exilado, Anton Denikin, general do exército imperial russo
que combateu contra os bolcheviques durante a guerra civil que se seguiu
à revolução de 1917, teve a dignidade e a coragem de rejeitar
decididamente todas as propostas de colaboração por parte dos nazistas,
apesar de ter sobejos motivos para odiar os bolcheviques.
As atuais gerações do povo alemão julgam
por bem pedir desculpas pela barbariedade do regime nazista,
responsável pela morte de milhões de pessoas, embora tivessem crescido
na nova Alemanha em que a propaganda dessa ideologia totalitária e
desumana é perseguida pela lei.
Além de ser impossível imaginar
ex-homens das SS desfilarem pelas ruas de Berlim, é bem sabido como os
alemães contemporâneos cuidam – por vezes, melhor mesmo do que na
própria Rússia - dos túmulos de soldados soviéticos.
Será que subsiste na Rússia o sentimento
de ódio aos alemães, atualmente, passadas décadas desde a guerra mais
violenta que ceifou cerca de 30 milhões de vidas na ex-União Soviética.
Os primeiros a responder a esta pergunta
já durante a guerra, em pleno bloqueio a Leningrado, foram músicos
russos que interpretaram peças de Beethoven em salas frias de uma cidade
morrando de fome ou por aqueles que conservaram obras de Schiller e
Goethe preferindo morrer de frio do que queimá-las para se aquecer
durante um inverno particularmente rigoroso.
Uma velha senhora, que perdeu toda sua família debaixo das bombas da Luftwaffe,
me contou que, durante a guerra, no meio das ruínas de sua cidade,
partilhava com prisioneiros de guerra alemães comida que lhe custa a
arranjar para si própria.
Uma história curiosa me foi contada por
um conhecido ucraniano que durante a guerra, ainda criança, foi
deportado para a Alemanha para trabalhar numa usina subterrânea. As
sentinelas alemãs se voltavam nas suas torres de vigia, findingo não
repararem nas crianças que passavam do outro lado das cercas de arame
farpado para pedirem aos soldados americanos e britânicos chocolate em
troca das maçãs colhidas no pomar que disfarçava a usina militar.
Uma senhora habitante da Bielorrússia
ocupada se lembrava como soldados alemães, às escondidas, traziam
medicamentos a seu filho gravemente doente, o que finalemente lhe salvou
a vida, enquanto homens de um destacamento punitivo das SS mataram
outros membros de sua família.
A guerra não destruiu o essencial – o
humanitarismo -, e os dois povos foram suficientemente inteligentes para
separarem as noções de “nazismo” e de “alemães”, de “bolchevismo” e de
“russos”, coisa essa de que certos políticos contemporâneos das
ex-repúblicas soviéticas parecem incapazes.
Hoje ninguém estranha que o Festival de
Cinema de Veneza tenha atribuído o “Leão de Ouro” ao realizador russo
Alexander Sokurov por sua adaptação cinematográfica do “Faust”, e ainda
por cima em alemão.
Nos anos 80 e 90 do século passado, os cantores alemães Thomas Anders e Dieter Bolen ultrapassaram em popularidade Lênin e os músicos do grupo alemão Scorpions, tal como do lendário Accept, são considerados na Rússia como “nossos”.
A coisa que me mais impressionou em
minha infância, passada em Volgogrado (ex-Stalingrado) não foi a
gigantesca estátua da Pátria-Mãe, de espada em punho, dominando as
margens do Volga, e sim o pequeno memorial que existe à entrada da
cidade e que tem o nome de “Campo de Batalha”.
Durante muitos anos depois da guerra, as
pessoas recolheram no campo estilhaços de bombas e projéteis, armas
russas e alemãs para, mais tarde, juntar todo esse arsenal numa
composição escultural – o Monumento. É possívelmente assim que pode se
imaginar a Morte, representada em metal deformado, que não poupou nem os
Russos, nem os Alemães, naquela batalha que acabou por ser determinante
do resultado da guerra.
Stalingrado foi um verdadeiro purgatório
que consubstancia, de maneira concentrada, todas as ideias existentes
sobre a guerra. No auge do frio, habitantes de Stalingrado cavaram
túmulos par soldados russos e alemães. Os mortos jazem em paz ao lado.
A canção Stalingrad, publicada recentemente pelo grupo alemão Accept tem as seguintes linhas:
Dois soldados morrem, a luz se apaga e os corpos abatem.
Mais não são soldados, mais não têm ordens para matar o inimigo.
Juntos, na dor comum, ficaram irmãos de sangue...
“Perdoar” não é, de modo algum, “esquecer”, mas sim não semear o mal.
Stalingrado é o destino que, mais cedo
ou mais tarde, merece qualquer agressor, por mais plausíveis que sejam
as definições que utilize para disfarçar seus atos, cujas expressões
reais são a guerra, o sangue e a destruição. É bom não esquecê-lo. As
lições de Stalingrado mantêm plenamente sua atualidade.
Travar guerras contra os mortos é uma
atitude profundamente indigna, tanto mais quando travadas pelos
descendentes daqueles cuja terra foi liberada dos nazistas, à custa de
sua vida, por soldados soviéticos. Eles também amavam a vida, mas esta
lhes foi tirada.